Gregório de Matos
Gregório
de Matos passou para a história da literatura brasileira como poeta
maldito. Conhecido na Bahia como “Boca do Inferno”, fez jus a
esse apelido devido à ácida crítica
que fazia à sociedade de seu tempo por meio de sua poesia satírica,
não poupando nem aristocracia, nem o clero, nem mulheres.
Coexistem
em suas obras tendências bastantes variadas:
·Poemas
satíricos de crítica ao meio social;
·Poemas
líricos resultantes de paixões momentâneas;
POESIA
LÍRICA AMOROSA
A
poesia lírica
amorosa
de Gregório é fortemente marcada pelo contraste, a identificação
entre os opostos, característica do Barroco. A noção de pecado é
muito forte, a mulher é, por um lado, um anjo e por outro,
demoníaca. Ele insiste na imagem imposta pela ideologia católica,
confundindo o amor e o encanto com sedução pecaminosa.
O
amor é retratado como fonte de prazer e sofrimento. A mulher é
retratada como um anjo e fonte de perdição (pois desperta o desejo
carnal)
É
curioso que a postura platônica é dominante, quando o poeta se
refere a mulheres brancas, de condição social superior, e a libido
agressiva, o erotismo e o desbocamento são as tônicas, quando o
poeta se inspira nas mulheres de condição social inferior,
especialmente as mulatas. Neste sentido, destaca-se já certa
“tropicalidade”, a antecipação de certo “sentimento
brasileiro”. Várias são as vezes que ele retrata seus casos com
freiras.
“Minha
rica mulatinha,
desvelo
e cuidado meu,
eu já fora todo teu,
e tu foras toda minha;
eu já fora todo teu,
e tu foras toda minha;
Juro-te,
minha vidinha,
se acaso minha qués ser,
que todo me hei de acender
em ser teu amante fino pois
por ti já perco o tino,
e ando para morrer."
se acaso minha qués ser,
que todo me hei de acender
em ser teu amante fino pois
por ti já perco o tino,
e ando para morrer."
Observe
os versos curtos e a aproximação com uma linguagem mais espontânea
e popular. A mulher é vista tanto de modo espiritualizado, quanto
como objeto de desejo carnal. Ambas as visões podem aparecer no
mesmo texto, estabelecendo um conflito.
Texto
No
texto a seguir “Rompe o Poeta com a Primeira Impaciência Querendo
Declarar-se e Temendo Perder Por Ousado”
“Anjo
no nome, Angélica na cara,
Isso
é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser
Angélica flor, e Anjo florente,
Em
quem, se não em vós se uniformara?
Quem
veria uma flor, que a não cortara
De
verde pé, de rama florescente?
E
quem um Anjo vira tão luzente,
Que
por seu Deus, o não idolatrara?
Se
como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis
o meu custódio, e minha guarda,
Livrara
eu de diabólicos azares.
Mas
vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto
que os Anjos nunca dão pesares,
Sois
Anjo, que me tenta, e não me guarda.
POESIA
SÁTIRA
O
“Boca do Inferno” não perdoava ninguém: ricos e pobres, negros,
brancos e mulatos, padres, freiras, autoridades civis e religiosas,
amigos e inimigos, todos, enfim, eram objeto de sua “lira
maldizente”.
O
governador Câmara Coutinho, por exemplo, foi assim retratado:
“Nariz
de embono
com
tal sacada,
que
entra na escada
duas
horas primeiro
que
seu dono.”
Contudo,
o melhor de sua sátira não é esse tipo de zombaria, engraçada e
maldosa, mas a crítica de cunho geral aos vícios da sociedade. Sua
vasta galeria de tipos humanos contribui para construir sua maior e
principal personagem - a cidade da Bahia:
“Senhora Dona Bahia,
nobre
e opulenta cidade,
madrasta
dos naturais,
e
dos estrangeiros madre.”
A
cidade é assim descrita em
um
poema:
“Terra
que não aparece
neste
mapa universal
com
outra; ou são ruins todas,
ou
ela somente é má.”
Mas
nem sempre o poeta é rancoroso com sua cidade. No famoso soneto
“Triste Bahia”, já musicado por Caetano Veloso, Gregório
identifica-se com ela, ao comparar a situação de decadência em que
ambos vivem. O poema abandona o tom de zombaria das sátiras para
tornar-se um quase lamento:
“Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás
e estou do nosso antigo estado!
Pobre
te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica
te vi eu já, tu a mim abundante.”
Depreende-se
desse texto que as sátiras de Gregório de Matos desagradavam a
muita gente. Por isso ele defende seu direito de escrevê-las.
Aos vícios
Eu
sou aquele, que os passados anos
cantei
na minha lira maldizente
torpezas
do Brasil, vícios e enganos.
[...]
De
que pode servir, calar, quem cala,
Nunca
se há de falar, o que se sente?
Sempre
se há de sentir, o que se fala?
Qual
homem pode haver tão paciente,
Que
vendo o triste estado da Bahia,
Não
chore, não suspire, e não lamente?
[...]
Se
souberas falar, também falaras,
Também
satirizaras, se souberas,
E
se foras Poeta, poetizaras.
A
ignorância dos homens destas eras
Sisudos
faz ser uns, outros prudentes,
Que
a mudez canoniza bestas feras.
Há
bons, por não poder ser insolente,
Outros
há comedidos de medrosos,
Não
mordem outros não, por não ter dentes.
Quantos
há que os telhados têm vidros,
E
deixam de atirar sua pedrada
De
sua mesma telha receosos.
Uma
só natureza nos foi dada:
Não
criou Deus os naturais diversos,
Um
só Adão formou, e esse de nada.
Todos
somos ruins, todos perversos,
Só
nos distingue o vício, e a virtude,
De
que uns são comensais outros adversos.
Quem
maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse
só me censure, esse me note,
calem-se
os mais, chitom, e haja saúde.
A
produção satírica de Gregório de Matos não foi incomoda apenas
para seus contemporâneos, esta parte de sua obra, principalmente em
seus momentos mais “fortes”, foi muitas vezes censurada e cortada
em várias antologias escolares.
E
é com o estilo satírico que desenvolveremos um estudo mais
direcionado a Gregório de Matos, ele que pretendia, através da
sátira, manifestar explicitamente o funcionamento dos discursos do
poder. Em seus poemas utiliza de elementos como a “malandragem”,
“plágio”, “imoralidade”, “adultério”, “inveja”,
“racismo”, “realismo”, “furto”, “repúdio”,
“libertinagem” e “promiscuidade”. Portanto, partiremos para a
análise deste discurso satírico de Gregório de Matos, no seu poema
“Torna a definir o poeta os maus modos de obrar na governança da
Bahia, principalmente naquela universal fome de que padecia a
cidade”.
Que
falta nesta cidade?................Verdade (1)
Que
mais por sua desonra?...........Honra (2)
Falta
mais que se lhe ponha..........Vergonha. (3)
O
demo a viver se exponha, (4)
Por
mais que a fama a exalta, (5)
numa
cidade, onde falta (6)
Verdade,
Honra, Vergonha. (7)
Quem
a pôs neste socrócio?..........Negócio (8)
Quem
causa tal perdição?.............Ambição (9)
E
o maior desta loucura?...............Usura. (10)
Notável
desventura (11)
de
um povo néscio, e sandeu, (12)
que
não sabe, que o perdeu (13)
Negócio,
Ambição, Usura. (14)
Quais
são os seus doces objetos?....Pretos (15)
Tem
outros bens mais maciços?.....Mestiços (16)
Quais
destes lhe são mais gratos?...Mulatos. (17)
Dou
ao demo os insensatos, (18)
dou
ao demo a gente asnal, (19)
que
estima por cabedal (20)
Pretos,
Mestiços, Mulatos. (21)
Quem
faz os círios mesquinhos?...Meirinhos (22)
Quem
faz as farinhas tardas?.........Guardas (23)
Quem
as tem nos aposentos?.........Sargentos. (24)
Os
círios lá vêm aos centos, (25)
e
a terra fica esfaimando, (26)
porque
os vão atravessando (27)
Meirinhos,
Guardas, Sargentos. (28)
E
que justiça a resguarda?.............Bastarda (29)
É
grátis distribuída?......................Vendida (30)
Que
tem, que a todos assusta?.......Injusta. (31)
Valha-nos
Deus, o que custa, (32)
o
que El-Rei nos dá de graça, (33)
que
anda a justiça na praça (34)
Bastarda,
Vendida, Injusta. (35)
Que
vai pela clerezia?..................Simonia (36)
E
pelos membros da Igreja?..........Inveja (37)
Cuidei,
que mais se lhe punha?.....Unha. (38)
Sazonada
caramunha! (39)
enfim
que na Santa Sé (40)
o
que se pratica, (41)
é
Simonia, Inveja, Unha. (42)
E
nos frades há manqueiras?.........Freiras (43)
Em
que ocupam os serões?............Sermões (44)
Não
se ocupam em disputas?.........Putas. (45)
Com
palavras dissolutas (46)
me
concluís na verdade, (47)
que
as lidas todas de um Frade (48)
são
Freiras, Sermões, e Putas. (49)
O
açúcar já se acabou?..................Baixou (50)
E
o dinheiro se extinguiu?.............Subiu (51)
Logo
já convalesceu?.....................Morreu. (52)
À
Bahia aconteceu (53)
o
que a um doente acontece, (54)
cai
na cama, o mal lhe cresce, (55)
Baixou,
Subiu, e Morreu. (56)
A
Câmara não acode?...................Não pode (57)
Pois
não tem todo o poder?...........Não quer (58)
É
que o governo a convence?........Não vence. (59)
Que
haverá que tal pense, (60)
que
uma Câmara tão nobre (61)
por
ver-se mísera, e pobre (62)
Não
pode, não quer, não vence. (63)
Analisar
o poema gregoriano exige um olhar
crítico
e observador. É necessário compreender as figuras de linguagem, a
mensagem e as formas como as palavras vêm arrumadas no poema. De
início,
o título do poema é instigante, causa no leitor uma estranheza por
ser um pouco extenso. Este, porém, revela uma característica única
do autor, que vem satirizando de forma aguda o governo estabelecido
na Bahia, bem como, as autoridades religiosas, os militares e o
“povão”
em geral. Observe os versos curtos e a aproximação com uma
linguagem mais espontânea e popular.
Neste
poema, há uma critica óbvia à promiscuidade e a libertinagem
(versos 46 a 49), ao racimo (18 a 21), imoralidade (versos 11 a 14),
assim como também, à incompetência e à desonestidade. Por meio de
falsas perguntas, para as quais o poeta oferece respostas, Gregório
vai decompondo o interior da organização social. Este procedimento
parece dar um certo didatismo, reforçado pelo processo de
disseminação e recolher, muito comum na poesia barroca. Primeiro,
as palavras se disseminam, se dispersam para depois serem recolhidas,
reunidas em
um
mesmo verso. Assim, cria-se um tom conclusivo no final das estrofes.
Conclusão que abrange desde morais (verdade, honra, vergonha) e
abstratos até os motivos concretos da degradação desde valores
(negócio, ambição, usura) e seus principais agentes: pretos,
mestiços, meirinhos, guardas, etc.
Neste
poema, o mundo presente é insatisfatório, corroído pela inversão
de valores. O honesto é pobre; o ocioso triunfa; o incompetente
manda. O racismo e a libertinagem são representados de maneira
inversa: o racismo pela ascensão do negro e a libertinagem pelo
declínio do clero. No discurso satírico de Gregório, os termos
“negros”,
“mulata”,
“puta”,
“mestiços”,
etc., aplicam-se também como metáforas estereotipadas, como
caracterização pejorativa e insulto.
Como
vemos, do alto da pirâmide social a “rale”,
dos donos do poder aos mestiços, todos são responsáveis pela
universal fome que padecia a Bahia. As estrofes se assemelham do
ponto de vista das rimas, quando nos três primeiros versos são
rimas horizontais; nos quatro restantes, rimas verticais; e de sua
disposição gráfica: estrofes de três versos seguidas de estrofes
de quatro versos, sendo o último um conjunto de sete versos que
compõe cada esquema duplo de estrofes.
Em termos de conteúdo, as estrofes também se assemelham: do abstrato para o concreto (verdade, honra, vergonha, negócio, ambição, usura), dos tipos sociais às instituições, do povo néscio a El-Rei, Gregório de matos vai decompondo a organização de uma sociedade barroca baiana. A coloquialidade da linguagem, o uso de termo “de baixo calão”, o tom de oralidade e principalmente a arrasadora critica que faz às desigualdades mostra como é forte o discursos satírico de Gregório, um poeta ligado às questões sociais e públicas, que também defende momentos melhores para sua terra, a Bahia.
Portanto, o discurso satírico de Gregório serve para criticar os costumes e preconceitos de uma sociedade e muitas vezes, a crítica feita a comportamentos explícitos ou encobertos, pode-se transformar em uma denúncia a atos dissimulados que contrariam a ordem e as normas humanas.
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